Em
16 de novembro de 2017 foi divulgada a premiação de um Grammy Latino para a obra
Sonata del Decamerón Negro de Leo
Brouwer na categoria melhor obra de composição contemporânea, contida no álbum (Gran Recital) da violonista espanhola Mabel Millán, pela gravadora AdLib. Nascida em Córdoba, Mabel
Millán (23 anos) é premiada em dezenas de concursos e dona de uma sensibilidade
e destreza incríveis.
A Sonata – A premiação me motivou a falar
da Sonata del Decamerón Negro, a terceira de Brouwer
para violão solo, composta em 2012, dedicada a Costas Cotsiolis e estreada por esse
violonista grego no 21º Festival de Koblenz (Alemanha), em 2013. Como se sabe, em 1981, Brouwer
compôs o Decamerón Negro inspirado pela
obra homônima de Leo Frobenius, em que fábulas e contos cavalheirescos foram coletados
nos anos 1920 por esse antropólogo na África profunda. Essa Sonata de 2012 é, portanto, uma nova obra que demonstra seu interesse pela temática do Decamerón Negro. Vamos partir para um
exame da Sonata que está composta em quatro Movimentos, pelo que nos sugerem seus
títulos e por suas sonoridades resultantes.
I. Güijes y Gnomos – Güije é um duende do imaginário popular
cubano, que habita matas próximas a rios (assim como nosso Curupira ou mesmo o
Saci), e sua imagem pode remeter ao gnomo europeu, não só pela aparência, mas no
sentido mágico também, pois um Güije
poderia se transformar em criaturas, como peixes e aves, e, como a maioria dos duendes, costuma pregar uma
peça nos seres humanos.
Esse
movimento abre a Sonata pelo encontro
de mundos sonoros, sendo que a musicalidade cubana está presente em padrões de cinquillo, que se unem a citações de Fantasias de Luys de Milán; trata-se de
uma metáfora musical para a mistura de culturas – algo tão evidente no violão
de Cuba, da América Latina, nações inventadas num espaço coabitado a partir da
Renascença.
II. Treno por Oyá – Treno, o canto fúnebre, Oyá,
orixá feminino das águas e ventanias. Na Santería cubana, religião
equivalente ao nosso Candomblé, Oyá seria muito parecida a nossa Iansã pelo poder das
tempestades, ou mesmo Iemanjá ou Oxumaré, pelo contato com as águas. O que há para se lamentar por Oyá?
Segundo Brandon[1] (1997, p. 77) Oyá é também a responsável por nos levar ao mundo
dos mortos, ela é a guardiã dos cemitérios.
Esse
movimento inicia com um ambiente sonoro algo misterioso (anunciado por harmônicos e célula melódica nos agudos) e logo passa para uma dança (ritual dos orixás, por certo), alternando
com a retomada do ambiente inicial. Enfim, busca de ancestralidade africana
nessa seção.
III. Burlesca del Aire –
Árias e burlescas estão
presentes no cotidiano da literatura musical de herança espanhola. Células rítmicas da música popular cubana
iniciam essa parte, em alturas de notas que criam melodias atonais, que por sua vez encontram um caminho para microcitações
de motivos que suscitam um variado clima espanhol, sendo a mazurca Adelita de Francisco Tárrega a citação direta.
IV. La Risa de los
Griots – O sorriso
dos griots. Um griot (se pronuncia
griô) tem uma das funções mais importantes da sociedade tradicional africana,
que é narrar fatos históricos que identificam aquele grupo social; a memória de
um povo está presente em suas narrativas, e o griot faz isso com a ajuda da
música. A sonoridade resultante desse movimento retoma ideias de ancestralidade
africana, de culto e danças rituais.
Narrativa – O que fica mais marcado na Sonata del Decameron Negro é a narrativa
que Brouwer faz do 1.º ao 4.º movimento, em que as sonoridades se alternam em modos de ser culturalmente distintos,
mas reunidos nesse espaço coabitado. Um “decamerón cubano”, de seres míticos e
que carregaram sentidos da época da Cuba colonial, à deidade afro, à música
popular de salões, ao encontro do novo, enfim histórias narradas também ali, de
herança múltipla como a do autor, por tudo o que isso significa.
A
Sonata se aproxima muito sutilmente a
algo de Decameron Negro (1981), estando
plenamente construída por novos motivos. Uma bela obra do repertório mais
recente desse brilhante compositor que necessita dessa relação com o
violão ao longo de sua vida. O violão sem Brouwer seria inimaginável. É uma necessidade para ambos.
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