O violão é como água que se amolda a qualquer
recipiente. (Carlevaro, 1997, Revista Violão
Intercâmbio)
Para repercutir esse belo
pensamento do violonista e compositor uruguaio Abel Carlevaro, vamos apreciar
duas de suas composições para violão solo: Prelúdio
Americano 3 – Campo e Intermezzo de Cronomías I.
Alguns pontos a considerar sobre o Prelúdio Americano 3:
Título: reunir o substantivo Prelúdio ao adjetivo Americano já sugere uma proposta de
diluição de fronteiras: Velho e Novo Mundos terminando de se fundir por meio da
arte, sendo a forma do Prelúdio no contexto do Campo, o território, a paisagem latino-americana em foco; não há
paradoxo nisso, mas um amálgama, o popular no acadêmico, o culto no popular,
realizado por alguém que admirava ambos contextos.
Sonoridades: a aceitação da dissonância como
procedimento composicional em um instrumento tão popular, não é tarefa fácil,
pois a tradição tende a gerar expectativas como, por exemplo, uma harmonia de
acordes perfeitos, porém em Campo
temos uma disposição mais livre, com cordas soltas inclusive. Ainda assim, a composição não abandona de vez
as consonâncias ou funções. Essa disposição vem ao encontro do grande
referencial inovador do século XX para violão, que é o repertorio de Heitor
Villa-Lobos, por quem Carlevaro sempre teve enorme afinidade, realizando muitas
estreias das obras do brasileiro, e uma expressa admiração, homenageando-o com
várias obras. Lembremos que Campo foi
composta ainda na década de 50 do século XX, ou seja, Carlevaro pisou no
terreno das mudanças antes de muitas obras dos revolucionários anos 60.
Bach: A Passacaglia em Do menor BWV 582 para órgão foi a referência para a
criação do tema (nos baixos) do Preludio,
provocando uma associação imediata, mas logo novas ideias se desenvolvem ao
longo da obra; guarda ainda um pendor pela polifonia, em uma disposição a duas
vozes. Novamente a mistura, agora em temporalidades propositalmente
sobrepostas, um quê de barroco e modernismo, algo bem comum ao ser
latino-americano.
Cronomías I é uma sonata, composta em 1971, apresentando interessantes procedimentos
composicionais, que promovem inovações para o idioma do instrumento. O Intermezzo é a sua segunda parte dessa sonata.
A seguir,
algumas das ideias do Intermezzo:
Série: a obra é gerada a partir da
série dodecafônica
Bula: a bula com instruções é
necessária em Cronomías I, pois o
grafismo novo e a notação tradicional estão presentes.
Timbres: buscar timbres era algo
fundamental para Carlevaro, que costumava obter diferenças timbrísticas em
centímetros no violão, inclusive comparando as resultantes sonoras com
instrumentos de orquestra (como pude presenciar em masterclass). No Intermezzo, essa ideia está muito
presente.
Percussão no violão: o efeito aparece logo na
introdução de Intermezzo e será o
desfecho da peça. Golpear o tampo do violão ainda é um tabu para muitos
intérpretes do meio clássico. No meio
contemporâneo, esse procedimento adquiriu muito mais profusão.
Oscilação da altura das notas: espécie de vibrato mais contundente, realizado para deslocar a definição
precisa da altura (temperamento) na nota indicada.
Melodias independentes de mãos
direita e esquerda:
um dos efeitos mais interessantes, por sua efetividade e beleza, é o trecho em
que a mão esquerda inicia um trinado enquanto a direita contraponteia uma
melodia em harmônicos naturais; essa ideia é apresentada no início e na
retomada para o final de Intermezzo.
É um deleite ouvir, ver e tocar esse jogo simples, mas tão eficiente.
Carlevaro
está comumente associado a seu grande trabalho didático no violão; ele defendeu
verdadeiras teses para a resolução de problemas anatômicos e técnicos, que visavam longevidade na
performance e, acima de tudo, uma plena interpretação no instrumento. Ele soube
fazer seu espaço no mundo da música e por sua relação com Villa-Lobos tornou-se
um habitué do Brasil, o que muito nos
honrou e mudou o curso do trabalho de violonistas daqui, inclusive de gerações
posteriores a esse contato. Como violonista, suas interpretações são tocantes e
pioneiras, desde o valor que logo percebeu na obra de Agustín Barrios até a
performance e criação no meio contemporâneo.
Trabalhos e mais sobre Carlevaro:
Marcelo
Fernandes Pereira - Dissertação de Mestrado: A Escola Violonística de Abel Carlevaro, Escola de Comunicações e
Artes, Universidade de São Paulo, 2003.
Alfredo
Escande - Abel Carlevaro - un nuevo mundo
en la guitarra. Montevideu: Aguilar, 2005.
Alfredo
Escande - canal do Youtube com vídeos e programa de rádio sobre Carlevaro