"Música: hálito das estátuas. Talvez:
silêncio das pinturas (...)"
versos iniciais de À música, de Rilke.
Construction with Guitar
Player: Beyond the White Hand (2013)
Sir Harrison Birtwistle (1934),
renomado compositor britânico, tem uma produção grande e variada – solos
instrumentais, câmara, obras vocais e concertos sinfônicos, com marcas de uma
poética inovadora. Sua “gramática” experimental e refinada se enlaça com um quê
de docilidade, de melancolia, como em Construction with Guitar
Player para violão solo. As motivações que o levaram a compor
para o instrumento, a estreia e informações interessantes, como o título da
obra, podem ser obtidas em alguns pontos da Internet (veja em Mais, ao
final desse post). Vou me ater à peça somente pelo viés
da escuta que fiz da interpretação do violonista Andrey Lebedev.
Construction... é uma obra complexa, rica em uma
polifonia inerente. Seu aparente discurso breve, celular, é engendrado de forma
a se aprofundar, a partir de um “tema” que não abandona e que se adensa,
culminando em certo ponto, fazendo o caminho de volta, gradativamente, com
gestos que vão rememorando o “tema” até prover um desfecho.
A primorosa interpretação de Lebedev
permite perceber fraseados, dinâmicas (eu não quis ter acesso à partitura, para
essa escuta) em respirações e discurso de seções bem contrastantes; na
essência, observei que a relação intervalar combina o pp com o
fim de frases em descendente, o que promove, para mim, um ar de resolução em
cada bloco.
Essa narrativa em blocos – mais de
20 com certeza, em cerca de 15 minutos nessa performance de Lebedev – são como
transições em que células ora diluídas ora estendidas relembram a relação
intervalar do “tema”. Tudo com um grau de lirismo, de “estados de alma” e de,
como digo, um repouso.
Os recursos sonoros do violão estão lá:
harmônicos, tamboras, pizzicato e pizz. a
bartok, privilegiando o Timbre, dando uma “terceira dimensão” à obra, para
quem se soltar mais na escuta.
Percurso da
escuta: ouvindo imagens – A
célula geradora de Construction se apresenta em planos sonoros
que se entrecruzam, dando um efeito estereofônico. O discurso da célula inicial
vai se recobrindo de registros graves e agudos, dinâmicas pontuais de ff e pausas, pois o silêncio é uma conquista nessa seara.
Quase ao final dessa reiteração do
“tema”, com um cruzar de mãos Lebedev executa uma técnica estendida para o
prolongamento do som, mistura de sonoridades/planos, realizando o desejo do
compositor, num instrumento difícil de manter o som como é o violão; a duração
do acorde é cuidada enquanto a mão direita vai ao espelho do violão executar os
baixos solicitados (aos 1:35 do vídeo).
Subitamente uma célula ataca agora
em andamento agitado, mas brevemente retorna à ideia do lento, discursivo. Essa
alternância de células vai se adensando. A ideia-tema não desaparece nunca, ela
é transfigurada, trabalhada, variada, os planos entrecruzados ressurgem, não
explícitos, mas recobertos. Outro bloco de maior agitação surge e aos poucos
cresce em dinâmica. Retoma-se o andamento lento, discursivo, e a célula-tema
surge em harmônicos.
No meio da peça, o Timbre assume
importância – ideias com efeitos percussivos e alternância com frases mais
movidas e outras realizadas por pizzicatos – e brevemente o
compositor nos rememora o “tema”, que intercala com células agitadas e segue a
fraseados em tamboras e a outros lentos, expressivos, em
harmônicos.
Uma batida no tampo (um motivo) inicia
um discurso agitado, o mais de todos, e com intensidade de volume, finalizando
(aos 8:20) com um acorde. Segue-se mais alternância com tamboras e um discurso
movimentado que tem seu auge (aos 8:45) e logo ataca para outra ideia que
marcha para o agudíssimo (até 09:09), sendo este o ponto de maior intensidade
em altura (aos 09:21) – esse trecho todo me pareceu como uma “seção áurea” da
peça, pelo caráter de clímax (timbre, intensidade, altura, ritmo).
Em seguida, suaviza-se súbito com uma
ambiência em pp e harmônicos. O discurso se alterna
entre forte e suave pp e com um acorde
obstinadamente em ff (um motivo). Novamente
repousa. Inicia-se outra ideia – mais forte e bem agitada, com pizz. a
bartok, e uma sonoridade mais bruta de notas em staccatos (motivos);
e segue adensando, ritmo e dinâmica.
Retoma algo do discurso suave; por trás
da polifonia, sons já conhecidos, expandidos, dialogando em ff (acordes)
e piano (melodias), são os entreplanos em relevo; evidencia-se
que um retorno modificado está ocorrendo. Uma transição breve leva ao “tema”
revisitado aos poucos. Por fim, fica claro que o evento sonoro que inicia Construction...
reaparece e caminha para um fim, nuanças, acordes recapitulados docemente,
terminando em piano e harmônico final.
Síntese – De Construction...,
de Sir Harrison Birtwistle (sonoridade até no nome), eu quis saber como ela
surge (seus sons iniciais parecem pairar no ar, como gongos dentro de um
templo), como ela continua, o modo como se move, atravessa e como finda. Parece
expandir continuamente a célula que a gerou, deslocando motivos identificáveis
em um mesmo bloco, paralelamente e, também, de um bloco a outro, às vezes
parece um cânon, metamorfoseado. Para mim, a estabilidade da obra reside na
persistência de um “tema” e nos motivos inteligíveis.
Construction... foi criada por uma perspectiva
subjetiva, intraduzível, e quaisquer apontamentos de mimetismos, submissões a
referências, aproximações pictóricas com o título, representações emotivas...
são meros ensaios, tênues; no entanto, tal nível de abstração vem de uma
autonomia conquistada, numa abertura para ambos os lados, de quem a criou e de
quem a recepcionou.
Mais:
"Música: hálito das estátuas. Talvez:
silêncio das pinturas (...)"
versos iniciais de À música, de Rilke.
Construction with Guitar
Player: Beyond the White Hand (2013)
Sir Harrison Birtwistle (1934),
renomado compositor britânico, tem uma produção grande e variada – solos
instrumentais, câmara, obras vocais e concertos sinfônicos, com marcas de uma
poética inovadora. Sua “gramática” experimental e refinada se enlaça com um quê
de docilidade, de melancolia, como em Construction with Guitar
Player para violão solo. As motivações que o levaram a compor
para o instrumento, a estreia e informações interessantes, como o título da
obra, podem ser obtidas em alguns pontos da Internet (veja em Mais, ao
final desse post). Vou me ater à peça somente pelo viés
da escuta que fiz da interpretação do violonista Andrey Lebedev.
Construction... é uma obra complexa, rica em uma
polifonia inerente. Seu aparente discurso breve, celular, é engendrado de forma
a se aprofundar, a partir de um “tema” que não abandona e que se adensa,
culminando em certo ponto, fazendo o caminho de volta, gradativamente, com
gestos que vão rememorando o “tema” até prover um desfecho.
A primorosa interpretação de Lebedev
permite perceber fraseados, dinâmicas (eu não quis ter acesso à partitura, para
essa escuta) em respirações e discurso de seções bem contrastantes; na
essência, observei que a relação intervalar combina o pp com o
fim de frases em descendente, o que promove, para mim, um ar de resolução em
cada bloco.
Essa narrativa em blocos – mais de
20 com certeza, em cerca de 15 minutos nessa performance de Lebedev – são como
transições em que células ora diluídas ora estendidas relembram a relação
intervalar do “tema”. Tudo com um grau de lirismo, de “estados de alma” e de,
como digo, um repouso.
Os recursos sonoros do violão estão lá:
harmônicos, tamboras, pizzicato e pizz. a
bartok, privilegiando o Timbre, dando uma “terceira dimensão” à obra, para
quem se soltar mais na escuta.
Percurso da
escuta: ouvindo imagens – A
célula geradora de Construction se apresenta em planos sonoros
que se entrecruzam, dando um efeito estereofônico. O discurso da célula inicial
vai se recobrindo de registros graves e agudos, dinâmicas pontuais de ff e pausas, pois o silêncio é uma conquista nessa seara.
Quase ao final dessa reiteração do
“tema”, com um cruzar de mãos Lebedev executa uma técnica estendida para o
prolongamento do som, mistura de sonoridades/planos, realizando o desejo do
compositor, num instrumento difícil de manter o som como é o violão; a duração
do acorde é cuidada enquanto a mão direita vai ao espelho do violão executar os
baixos solicitados (aos 1:35 do vídeo).
Subitamente uma célula ataca agora
em andamento agitado, mas brevemente retorna à ideia do lento, discursivo. Essa
alternância de células vai se adensando. A ideia-tema não desaparece nunca, ela
é transfigurada, trabalhada, variada, os planos entrecruzados ressurgem, não
explícitos, mas recobertos. Outro bloco de maior agitação surge e aos poucos
cresce em dinâmica. Retoma-se o andamento lento, discursivo, e a célula-tema
surge em harmônicos.
No meio da peça, o Timbre assume
importância – ideias com efeitos percussivos e alternância com frases mais
movidas e outras realizadas por pizzicatos – e brevemente o
compositor nos rememora o “tema”, que intercala com células agitadas e segue a
fraseados em tamboras e a outros lentos, expressivos, em
harmônicos.
Uma batida no tampo (um motivo) inicia
um discurso agitado, o mais de todos, e com intensidade de volume, finalizando
(aos 8:20) com um acorde. Segue-se mais alternância com tamboras e um discurso
movimentado que tem seu auge (aos 8:45) e logo ataca para outra ideia que
marcha para o agudíssimo (até 09:09), sendo este o ponto de maior intensidade
em altura (aos 09:21) – esse trecho todo me pareceu como uma “seção áurea” da
peça, pelo caráter de clímax (timbre, intensidade, altura, ritmo).
Em seguida, suaviza-se súbito com uma
ambiência em pp e harmônicos. O discurso se alterna
entre forte e suave pp e com um acorde
obstinadamente em ff (um motivo). Novamente
repousa. Inicia-se outra ideia – mais forte e bem agitada, com pizz. a
bartok, e uma sonoridade mais bruta de notas em staccatos (motivos);
e segue adensando, ritmo e dinâmica.
Retoma algo do discurso suave; por trás
da polifonia, sons já conhecidos, expandidos, dialogando em ff (acordes)
e piano (melodias), são os entreplanos em relevo; evidencia-se
que um retorno modificado está ocorrendo. Uma transição breve leva ao “tema”
revisitado aos poucos. Por fim, fica claro que o evento sonoro que inicia Construction...
reaparece e caminha para um fim, nuanças, acordes recapitulados docemente,
terminando em piano e harmônico final.
Síntese – De Construction...,
de Sir Harrison Birtwistle (sonoridade até no nome), eu quis saber como ela
surge (seus sons iniciais parecem pairar no ar, como gongos dentro de um
templo), como ela continua, o modo como se move, atravessa e como finda. Parece
expandir continuamente a célula que a gerou, deslocando motivos identificáveis
em um mesmo bloco, paralelamente e, também, de um bloco a outro, às vezes
parece um cânon, metamorfoseado. Para mim, a estabilidade da obra reside na
persistência de um “tema” e nos motivos inteligíveis.
Construction... foi criada por uma perspectiva
subjetiva, intraduzível, e quaisquer apontamentos de mimetismos, submissões a
referências, aproximações pictóricas com o título, representações emotivas...
são meros ensaios, tênues; no entanto, tal nível de abstração vem de uma
autonomia conquistada, numa abertura para ambos os lados, de quem a criou e de
quem a recepcionou.
Mais:
silêncio das pinturas (...)"
versos iniciais de À música, de Rilke.
Sir Harrison Birtwistle (1934),
renomado compositor britânico, tem uma produção grande e variada – solos
instrumentais, câmara, obras vocais e concertos sinfônicos, com marcas de uma
poética inovadora. Sua “gramática” experimental e refinada se enlaça com um quê
de docilidade, de melancolia, como em Construction with Guitar
Player para violão solo. As motivações que o levaram a compor
para o instrumento, a estreia e informações interessantes, como o título da
obra, podem ser obtidas em alguns pontos da Internet (veja em Mais, ao
final desse post). Vou me ater à peça somente pelo viés
da escuta que fiz da interpretação do violonista Andrey Lebedev.
Construction... é uma obra complexa, rica em uma
polifonia inerente. Seu aparente discurso breve, celular, é engendrado de forma
a se aprofundar, a partir de um “tema” que não abandona e que se adensa,
culminando em certo ponto, fazendo o caminho de volta, gradativamente, com
gestos que vão rememorando o “tema” até prover um desfecho.
A primorosa interpretação de Lebedev
permite perceber fraseados, dinâmicas (eu não quis ter acesso à partitura, para
essa escuta) em respirações e discurso de seções bem contrastantes; na
essência, observei que a relação intervalar combina o pp com o
fim de frases em descendente, o que promove, para mim, um ar de resolução em
cada bloco.
Essa narrativa em blocos – mais de
20 com certeza, em cerca de 15 minutos nessa performance de Lebedev – são como
transições em que células ora diluídas ora estendidas relembram a relação
intervalar do “tema”. Tudo com um grau de lirismo, de “estados de alma” e de,
como digo, um repouso.
Os recursos sonoros do violão estão lá:
harmônicos, tamboras, pizzicato e pizz. a
bartok, privilegiando o Timbre, dando uma “terceira dimensão” à obra, para
quem se soltar mais na escuta.
Percurso da
escuta: ouvindo imagens – A
célula geradora de Construction se apresenta em planos sonoros
que se entrecruzam, dando um efeito estereofônico. O discurso da célula inicial
vai se recobrindo de registros graves e agudos, dinâmicas pontuais de ff e pausas, pois o silêncio é uma conquista nessa seara.
Quase ao final dessa reiteração do
“tema”, com um cruzar de mãos Lebedev executa uma técnica estendida para o
prolongamento do som, mistura de sonoridades/planos, realizando o desejo do
compositor, num instrumento difícil de manter o som como é o violão; a duração
do acorde é cuidada enquanto a mão direita vai ao espelho do violão executar os
baixos solicitados (aos 1:35 do vídeo).
Subitamente uma célula ataca agora
em andamento agitado, mas brevemente retorna à ideia do lento, discursivo. Essa
alternância de células vai se adensando. A ideia-tema não desaparece nunca, ela
é transfigurada, trabalhada, variada, os planos entrecruzados ressurgem, não
explícitos, mas recobertos. Outro bloco de maior agitação surge e aos poucos
cresce em dinâmica. Retoma-se o andamento lento, discursivo, e a célula-tema
surge em harmônicos.
No meio da peça, o Timbre assume
importância – ideias com efeitos percussivos e alternância com frases mais
movidas e outras realizadas por pizzicatos – e brevemente o
compositor nos rememora o “tema”, que intercala com células agitadas e segue a
fraseados em tamboras e a outros lentos, expressivos, em
harmônicos.
Uma batida no tampo (um motivo) inicia
um discurso agitado, o mais de todos, e com intensidade de volume, finalizando
(aos 8:20) com um acorde. Segue-se mais alternância com tamboras e um discurso
movimentado que tem seu auge (aos 8:45) e logo ataca para outra ideia que
marcha para o agudíssimo (até 09:09), sendo este o ponto de maior intensidade
em altura (aos 09:21) – esse trecho todo me pareceu como uma “seção áurea” da
peça, pelo caráter de clímax (timbre, intensidade, altura, ritmo).
Em seguida, suaviza-se súbito com uma
ambiência em pp e harmônicos. O discurso se alterna
entre forte e suave pp e com um acorde
obstinadamente em ff (um motivo). Novamente
repousa. Inicia-se outra ideia – mais forte e bem agitada, com pizz. a
bartok, e uma sonoridade mais bruta de notas em staccatos (motivos);
e segue adensando, ritmo e dinâmica.
Retoma algo do discurso suave; por trás
da polifonia, sons já conhecidos, expandidos, dialogando em ff (acordes)
e piano (melodias), são os entreplanos em relevo; evidencia-se
que um retorno modificado está ocorrendo. Uma transição breve leva ao “tema”
revisitado aos poucos. Por fim, fica claro que o evento sonoro que inicia Construction...
reaparece e caminha para um fim, nuanças, acordes recapitulados docemente,
terminando em piano e harmônico final.
Síntese – De Construction...,
de Sir Harrison Birtwistle (sonoridade até no nome), eu quis saber como ela
surge (seus sons iniciais parecem pairar no ar, como gongos dentro de um
templo), como ela continua, o modo como se move, atravessa e como finda. Parece
expandir continuamente a célula que a gerou, deslocando motivos identificáveis
em um mesmo bloco, paralelamente e, também, de um bloco a outro, às vezes
parece um cânon, metamorfoseado. Para mim, a estabilidade da obra reside na
persistência de um “tema” e nos motivos inteligíveis.
Construction... foi criada por uma perspectiva
subjetiva, intraduzível, e quaisquer apontamentos de mimetismos, submissões a
referências, aproximações pictóricas com o título, representações emotivas...
são meros ensaios, tênues; no entanto, tal nível de abstração vem de uma
autonomia conquistada, numa abertura para ambos os lados, de quem a criou e de
quem a recepcionou.
Mais:
Vídeo da Guitarcoop – Andrey Lebedev toca Birtwistle
Vídeo de Fabio Zanon (GuitarCoop) sobre a série New Music for Guitar, comentando a obra
Página de Andrey Lebedev, comentando a obra
http://andreylebedev.com/news/picasso-and-harrison-birtwistle/
Julian Bream Trust, obras encomendadas
http://www.julianbreamtrust.org/scholars-and-commissions
Julian Bream Trust, obras encomendadas
http://www.julianbreamtrust.org/scholars-and-commissions
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