sábado, 24 de fevereiro de 2018

Construction with Guitar Player - Sir Harrison Birtwistle

"Música: hálito das estátuas. Talvez:
silêncio das pinturas (...)"
versos iniciais de À música, de Rilke.

Construction with Guitar Player: Beyond the White Hand (2013)


Sir Harrison Birtwistle (1934), renomado compositor britânico, tem uma produção grande e variada – solos instrumentais, câmara, obras vocais e concertos sinfônicos, com marcas de uma poética inovadora. Sua “gramática” experimental e refinada se enlaça com um quê de docilidade, de melancolia, como em Construction with Guitar Player para violão solo. As motivações que o levaram a compor para o instrumento, a estreia e informações interessantes, como o título da obra, podem ser obtidas em alguns pontos da Internet (veja em Mais, ao final desse post). Vou me ater à peça somente pelo viés da escuta que fiz da interpretação do violonista Andrey Lebedev.
Construction... é uma obra complexa, rica em uma polifonia inerente. Seu aparente discurso breve, celular, é engendrado de forma a se aprofundar, a partir de um “tema” que não abandona e que se adensa, culminando em certo ponto, fazendo o caminho de volta, gradativamente, com gestos que vão rememorando o “tema” até prover um desfecho.
A primorosa interpretação de Lebedev permite perceber fraseados, dinâmicas (eu não quis ter acesso à partitura, para essa escuta) em respirações e discurso de seções bem contrastantes; na essência, observei que a relação intervalar combina o pp com o fim de frases em descendente, o que promove, para mim, um ar de resolução em cada bloco.
Essa narrativa em blocos – mais de 20 com certeza, em cerca de 15 minutos nessa performance de Lebedev – são como transições em que células ora diluídas ora estendidas relembram a relação intervalar do “tema”. Tudo com um grau de lirismo, de “estados de alma” e de, como digo, um repouso.
Os recursos sonoros do violão estão lá: harmônicos, tamboraspizzicato e pizz. a bartok, privilegiando o Timbre, dando uma “terceira dimensão” à obra, para quem se soltar mais na escuta.
Percurso da escuta: ouvindo imagens – A célula geradora de Construction se apresenta em planos sonoros que se entrecruzam, dando um efeito estereofônico. O discurso da célula inicial vai se recobrindo de registros graves e agudos, dinâmicas pontuais de ff e pausas, pois o silêncio é uma conquista nessa seara.
Quase ao final dessa reiteração do “tema”, com um cruzar de mãos Lebedev executa uma técnica estendida para o prolongamento do som, mistura de sonoridades/planos, realizando o desejo do compositor, num instrumento difícil de manter o som como é o violão; a duração do acorde é cuidada enquanto a mão direita vai ao espelho do violão executar os baixos solicitados (aos 1:35 do vídeo).
Subitamente uma célula ataca agora em andamento agitado, mas brevemente retorna à ideia do lento, discursivo. Essa alternância de células vai se adensando. A ideia-tema não desaparece nunca, ela é transfigurada, trabalhada, variada, os planos entrecruzados ressurgem, não explícitos, mas recobertos. Outro bloco de maior agitação surge e aos poucos cresce em dinâmica. Retoma-se o andamento lento, discursivo, e a célula-tema surge em harmônicos.
No meio da peça, o Timbre assume importância – ideias com efeitos percussivos e alternância com frases mais movidas e outras realizadas por pizzicatos – e brevemente o compositor nos rememora o “tema”, que intercala com células agitadas e segue a fraseados em tamboras e a outros lentos, expressivos, em harmônicos.
Uma batida no tampo (um motivo) inicia um discurso agitado, o mais de todos, e com intensidade de volume, finalizando (aos 8:20) com um acorde. Segue-se mais alternância com tamboras e um discurso movimentado que tem seu auge (aos 8:45) e logo ataca para outra ideia que marcha para o agudíssimo (até 09:09), sendo este o ponto de maior intensidade em altura (aos 09:21) – esse trecho todo me pareceu como uma “seção áurea” da peça, pelo caráter de clímax (timbre, intensidade, altura, ritmo).
Em seguida, suaviza-se súbito com uma ambiência em pp e harmônicos. O discurso se alterna entre forte e suave pp e com um acorde obstinadamente em ff (um motivo). Novamente repousa. Inicia-se outra ideia – mais forte e bem agitada, com pizz. a bartok, e uma sonoridade mais bruta de notas em staccatos (motivos); e segue adensando, ritmo e dinâmica.
Retoma algo do discurso suave; por trás da polifonia, sons já conhecidos, expandidos, dialogando em ff (acordes) e piano (melodias), são os entreplanos em relevo; evidencia-se que um retorno modificado está ocorrendo. Uma transição breve leva ao “tema” revisitado aos poucos. Por fim, fica claro que o evento sonoro que inicia Construction... reaparece e caminha para um fim, nuanças, acordes recapitulados docemente, terminando em piano e harmônico final.
Síntese – De Construction..., de Sir Harrison Birtwistle (sonoridade até no nome), eu quis saber como ela surge (seus sons iniciais parecem pairar no ar, como gongos dentro de um templo), como ela continua, o modo como se move, atravessa e como finda. Parece expandir continuamente a célula que a gerou, deslocando motivos identificáveis em um mesmo bloco, paralelamente e, também, de um bloco a outro, às vezes parece um cânon, metamorfoseado. Para mim, a estabilidade da obra reside na persistência de um “tema” e nos motivos inteligíveis. 
Construction... foi criada por uma perspectiva subjetiva, intraduzível, e quaisquer apontamentos de mimetismos, submissões a referências, aproximações pictóricas com o título, representações emotivas... são meros ensaios, tênues; no entanto, tal nível de abstração vem de uma autonomia conquistada, numa abertura para ambos os lados, de quem a criou e de quem a recepcionou.

Mais:

Vídeo da Guitarcoop – Andrey Lebedev toca Birtwistle
Vídeo de Fabio Zanon (GuitarCoop) sobre a série New Music for Guitar, comentando a obra
Página de Andrey Lebedev, comentando a obra





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