quinta-feira, 3 de maio de 2018

Busca das Sonoridades no Violão Parte 1

A música do século XX trouxe um interesse pelo Som como material propício para a busca de uma não-hierarquização de funções que o Tonalismo impôs como escola de composição durante séculos. As possibilidades abertas pelo pioneiro Ruidismo e pelos sistemas Atonal, Dodecafônico e Serial encontraram no Objeto Sonoro ideias musicais para se dialogar. O violão atua nessa área como um vasto campo de possibilidades; seus componentes físicos e sua conformação suscitam usos diversos, bem como a inflexão de materiais extraordinários para atuar junto ao instrumento, como metais, papel e utensílios corriqueiros. A vigência da máquina e de uma técnica expandida por músicos atuantes junto a compositores fizeram ampliar o número de obras. No século XXI essa vertente continua e mais obras surgem todos os dias. 

Vamos iniciar uma série de apreciações sobre as sonoridades e o violão na música contemporânea.

Jorge Antunes (1942) é um compositor carioca radicado em Brasília, de onde realiza inúmeras atividades; artista reverenciado por sua atuação na Música Nova no Brasil, de vanguarda e politicamente engajado. 
Abordo de sua autoria Solitária Noite (2015), dedicada a Adélia Issa e gravada por ela e Edelton Gloeden no CD Puertas (Selo SESC; 2017) – uma bela reunião de poesia e música –, tendo nessa canção de Antunes uma obra que utiliza sonoridades, no caso, por meio de um objeto, um copo de vidro.

Antunes usou esse soneto do poeta português Bocage (1765-1805):

Visão Nocturna 
(Feito na Índia)

Meia-noite seria; eu passeando
No meu palmar chorava o meu destino;
Eis que ao som de um gemido repentino
Olho, e vejo uma sombra no ar girando:

Quem és, Guirá? (pergunto-lhe arquejando);
Quem és, quem és, ó Lémure malino?...
"Sou o espírito (diz) de Saladino,
De quem já leste o caso miserando:"

De Grisalda as traições inda lamento
Da solitária noite entre os horrores,
E os olhos, mortal cego, abrir-te intento:" 

"Não soltes por Natércia mais clamores;
Sepulta a desleal no esquecimento:
Olha o trágico fim de meus amores!"

Forma - Trata-se de uma obra na forma canção para voz e violão, que transborda sua esfera tradicional pelas sonoridades que se expressam, no caso a sonoridade obtida pelo uso do copo de vidro nas cordas, bem como solicitações especiais à voz. 
Em uma curta introdução (10 compassos), o violão sola e já demonstra brevemente as sonoridades obtidas com o uso do copo de vidro; o Canto se une ao violão dando início a primeira seção (A, compasso 11) junto a primeira estrofe, com aspectos tonais, mas de certa extensão harmônica. A segunda seção (B, compasso 29) ocorre junto à segunda estrofe e aqui se traz a ideia das sonoridades tanto ao violão quanto à voz; a terceira seção (A’ - compasso 50) reexpõe ideias iniciais, mas parte para intensificar em estilo quase improvisado em cima do verso …Da solitária noite entre os horrores…e finaliza com a retomada da seção inicial (A-codeta, compasso 70). Em síntese, seria: ABA’A-codeta.

Conteúdo – Nessa obra, Bocage é homenageado por Antunes pelos 250 anos de nascimento do poeta, e há outras obras de Antunes com texto do consagrado português. Esse soneto em especial fala de amores não-correspondidos, em um fantasmagórico encontro com Saladino, protótipo do amor cavalheiresco.

Materiais - O violão atua por uma conformação dupla, uma tradicional configuração, dolente, ao lado da voz e outra que extrapola para a técnica estendida, com procedimentos como harpejar deslizando o copo pelas cordas do violão. A voz da Soprano também se divide entre a prosódia da canção (brasileira) e o canto-falado e solicitações específicas, como gutural.


Na breve introdução, vemos que o violão exercerá um discurso musical misto entre o tradicional e  de sonoridades obtidas.

Soprano e violão dialogam no campo experimental


Processo - Creio que o processo de enlaçar a forma, o conteúdo e os materiais de Solitária Noite ocorre por um modo representativo; se ao ir além da realidade narrando um encontro com um espírito, o poeta Bocage transcende a ideia do real, e nos pede uma aderência ao imaginário, o compositor Antunes teve êxito ao expressar essa essência do soneto com as sonoridades que vão além e junto ao som tradicional de violão/voz.  
Antunes como conhecedor do solfejo dos “sons novos”(1) aplica com maestria esse jogo entre fazer soar o violão por acordes de harmonias com extensões e promover no mesmo discurso musical a colocação de objetos sonoros de maneira articulada, expressiva, e o mesmo se dá com a voz. 

O tempo (duração em segundos) desses ataques com o copo de vidro é sugerido pelo compositor e a resultante sonora é uma série de glissandos portamentos, notadamente desproporcionais, como o compositor comenta (ANTUNES, 2004, p.116).

O título da canção provém do segundo verso da terceira estrofe…Da solitária noite entre os horrores… cujo tratamento vocal recebe um destaque na obra, sendo o único verso repetido na obra musical. 

O duo - A interpretação de obras nessa vertente necessita de uma entrega “militante” e tanto Adélia Issa quanto Edelton Gloeden possuem vasta experiência nessa seara. Gloeden é um dos primeiros violonistas dos que incluíram a música contemporânea em suas atuações artísticas; no palco do Festival Música Nova (Santos – São Paulo) e eventos similares ele realizou inúmeras estreias, e desde a década de 1970 Henze e Brouwer lhe são caros, bem como Santoro nos anos 1980, só para exemplificar alguns dos muitos nomes. Adélia Issa é possuidora do gesto cênico necessário para esse repertório e durante toda sua carreira esteve atenta a novas obras; uma parceira fundamental da música de câmara com violão.






(1)Antunes possui uma coleção intitulada “Sons Novos” abordando vários instrumentos e o já bem conhecido livro "Notação na Música Contemporânea".

Mais

ANTUNES, Jorge. Sons Novos para o Piano a Harpa e o Violão.Brasília: Sistrum, 2004.
_____. Notação na Música Contemporânea. Brasília: Sistrum, 1989.

Partitura Editora Sistrum


























CD Puertas - Adélia Issa & Edelton Gloeden
















2 comentários:

  1. Querida Teresinha, seu blog é um verdadeiro tesouro. Adorei este primeiro mergulho nas sonoridades do violão a partir de "Solitária Noite". Obrigado!

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  2. Ah obrigada querido Humberto. Daqui a pouco postarei um texto sobre Canticum como uma metáfora ao Maio de 68. Espero que goste!

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