Há exatos 50 anos o mundo ocidental assistia
atônito a imagens de manifestações de
rua em Paris por grupos de estudantes, que se uniriam a uma greve de
trabalhadores – um furor que se espalharia pela Europa, entrando para a
história como o Maio de 68, um fluxo e refluxo de vários outros
movimentos: contra a guerra do Vietnã e da Argélia; luta pelos direitos civis
dos negros estadunidenses; movimentos na América Latina; revolução cultural na
China...
1968 é também o ano da criação de Canticum,
obra icônica para violão de Leo Brouwer,
que reflete a ânsia experimental da produção ocidental na poética desse
incrível criador cubano.
Para além de quantidade, o relevo
de Brouwer na história da música contemporânea e, para nossa sorte, do violão,
se estabelece pelas inovações que proporciona ao idioma do instrumento,
atualizando suas características junto à vanguarda dos 60’, com quebra de
paradigmas e novos valores, principalmente o ruído e, em grande conta, o
silêncio.
Em pouco tempo Brouwer alcança uma
posição de destaque com ares renovadores para a aura romântica que o violão
ainda vivia. Algumas de suas obras iniciais, como Prelúdio e Pieza sin Título
(1956), Fuga e Danza
Característica (1957), aproximam-se de uma essência expandida por
tonalidades ambíguas, harmonias estendidas e procedimentos pouco usuais, como
sons percussivos em cordas e tampo.
Entretanto, a obra que inaugura
uma nova fase em sua produção e ao violão de concerto é Canticum, por ir além de quaisquer ideias musicais cogitadas para
um instrumento então pouco ligado à vanguarda, dimensionada por festivais como
o de Verão de Darmstadt (Alemanha), o de Outono em Varsóvia (Polônia), e nos
Estados Unidos, Verão em Tanglewood.
Trata-se de um “divisor de águas”
no repertório. Em Canticum o novo
é o elemento dominante, com o qual Brouwer preenche a lacuna do instrumento com
o meio musical, dando a impressão de que o violão nunca mais se afastará dos
desdobramentos histórico-estilísticos de movimentos artístico-culturais.
A obra
está dividida em duas partes: Eclosión
e Ditirambo. A escolha do título
principal – Canticum – refere-se a um termo em Latim, tradicional da
música, porém não com configuração religiosa, mas de elegia, de rito, tendo na parte Ditirambo a exacerbação dessa ideia. Já
o título Eclosión narra uma germinação
de sons que “lutam” para sair dos seus “casulos” de três acordes de alturas
idênticas que iniciam a música.
Desses
acordes saem as notas-base da obra, num processo de transformação passando por
momentos de adição cromática, acordal, rítmica, timbrística, numa espécie de
alargamento da realidade do violão, que Brouwer realiza com maestria – por isso
Hernández (2000:113) reitera que Canticum é uma obra didática, na
qual se buscou sintetizar elementos da vanguarda. Assim, Brouwer emprega
níveis de transformação ao longo da peça, o que a torna uma obra
revolucionária.
As
alturas das notas não são dispostas para formar uma melodia principal e outras
de acompanhamento, mas um conjunto de sonoridades que em certos momentos recebe
maior destaque, como nos acordes iniciais em posição de cluster de onde sairão células geradoras mínimas, que se alternam
por aproximação com o ruído, e o tratamento dado à pausa, ao silêncio:
Início de Eclosión de Canticum, em que intensidade de som (fff) e gran pausa (G.P.) são colocadas lado a lado, ênfase do jogo ruído–silêncio típico da vanguarda dos 60’. |
Podemos
ver o tratamento das durações em segundos (na contagem pessoal, internalizada,
do intérprete) e não em proporções fixas da notação musical, o ideal sonoro é
naturalizar a incerteza de pulso, já que a duração em segundos também não é
constante: 6”-4”; 6”-3”; 6”-4” – uma não-linearidade deliberada ao longo da
obra. Junte-se à ausência de fórmula e barras de compasso; entende-se o
discurso musical por sistemas ou linhas.
Outra
incerteza vem da ideia de existir ou não um “Tema” em Eclosión, pois de maneira bem diversa da tradicional, células
geradoras, três notas em geral surgem dos acordes iniciais
trazendo desenvolvimento à obra, mas não mais uma associação direta à memória
para se guardar um Tema recorrente; a memória aqui é trabalhada de maneira
diversa a tradicional; fragmentada.
Trecho inicial de Eclosión de Canticum, com algumas células geradoras perfazendo uma ideia de reiteração, surgidas dos acordes introdutórios da obra. |
A
vanguarda dos 60’ é também o momento do Timbre, e Brouwer realça isso nas
muitas variações em repetições de células mínimas: metálico, dolce, tambora, grafismos de sons percussivos (com os dedos no tampo do
violão).
Trecho com células geradoras dispostas em variações timbrísticas |
Outras
variações acontecem por adição de notas, com resultado sonoro de prolongamento
de células ou notas por expansão quase minimal;
as variações por adição de notas rápidas, repetidas ou por intervalos
diatônicos, resultam sonoramente pelo prolongamento de notas em trinados ou tremolos ou pulsação rítmica proporcional do mais longo ao mais
breve.
Uma
disposição de acordes em intervalos de 2as apresenta variação de dinâmica (ff-pp) e pausas entrecortadas, estas ora
regulares ora prolongadas, mais uma vez sugerindo um caráter de não-linearidade até nos silêncios.
Acordes
com pausas deliberadamente não lineares
|
Ocorre
mudança de altura (6ª corda) durante a passagem de Eclosión para Ditirambo, alterando-se o referencial, da constante
nota mais grave da obra, Mi para Mib; essa mudança de
registro – durante a execução – é procedimento raríssimo ainda hoje.
Em
Ditirambo, aspectos de Eclosión são recorrentes: células
geradoras mínimas vão passando por repetição e adição de notas, prolongando
cada vez mais o discurso, e a execução do Mib em ostinato. Ao final, uma nota, vinda do
agrupamento de notas adicionadas, se aproxima do ruidismo ao ser repetida com
intensidades de dinâmica e andamento até se extinguir. Uma última aparição de
uma célula geradora em glissando
desfecha a obra, obtendo um irônico repouso.
As
transformações na escrita de Canticum,
a reorganização da técnica para compor e
interpretar tal obra, um material mínimo, resultados sonoros quase
desconhecidos, pouco esperados ou não-associados, incertos... são adjetivos de
uma obra musical que mais parece uma declaração de ruptura à tradição, no
melhor espírito de época, de um artista de então 29 anos recém-completados.
Assim,
parece mesmo uma sincronia que Canticum
de Leo Brouwer tenha sido gerada no mesmo ano em que acontecimentos sociais e
políticos do Maio de 68 transformaram a visão da sociedade ocidental
sobre muitos valores tidos até então como imutáveis.
Citação:
HERNÁNDEZ,
Isabelle. Leo Brouwer. Editora musical de Cuba. Havana, 2000.
Mais:
Gilson Antunes ao vivo - Canticum - Leo Brouwer
Ótimo texto. Me deu vontade de estudar essa obra.
ResponderExcluirObrigada Thiago. Tenho certeza que ficará ótima em sua interpretação.
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